Com o tema Travessias, a Bienal de Arquitetura de São Paulo (BIA) propõe o debate sobre o movimento dos corpos e territórios por meio de uma programação que exerce a troca de experiências, memórias e identidades através de trabalhos plurais e multifacetados. A 13ª edição do evento aposta na formação de uma curadoria colaborativa e interdisciplinar a fim de criar pontes entre diferentes narrativas e sugere a (re)construção de um novo projeto de ocupação dos espaços.
Na abertura da mostra audiovisual Atravessamentos, realizada no Instituto Moreira Salles (IMS), aconteceu a exibição do documentário Ôri, que tem como fio condutor a vida da historiadora e ativista Beatriz Nascimento e mostra a importância dos quilombos na formação da identidade cultural brasileira. Na ocasião, a mestranda em História Social pela FFLCH/USP, Tailane Machado, convidada para o debate sobre a obra da intelectual homenageada, refletiu o significado da representatividade negra na bienal.
“A Beatriz Nascimento tinha uma proposta de fazer história que fosse, de fato, negra, escrita por pessoas negras, que falasse da população negra e isso está muito ligado ao espaço e essa busca pela identidade. Há uma importância muito grande em discutir a inclusão da população negra nos debates da sociedade como um todo. Não só nos temas que envolvem necessariamente o racismo e a segregação, mas é importante debater esses temas em diferentes áreas como a arquitetura. É imprescindível falar sobre temas como a circulação do corpo negro, da diáspora, porque precisam estar presentes em todos os âmbitos, na política, na cultura, na arquitetura, geografia”, avalia Tailane.
A antropóloga e educadora Raíssa Albano, co-curadora da bienal, lembra que, apesar de os grandes centros urbanos serem planejados a partir da visão de um homem branco, europeu, heteronormativo, é pertinente pensar a cidade para além da arquitetura pura, assimilando conhecimentos de outras áreas. “As cidades são construídas para esse homem, mas elas não são vividas só por ele. É sempre interessante pensar em soluções coletivas. A gente não sente a cidade como se fossem relações distintas, uma área voltada só para a literatura, outra só para urbanismo. Não, você sente tudo junto: se chega atrasado ao trabalho ou chega na hora certa, se consegue ir ao cinema ou sequer existe cinema perto de casa, se tem acesso a uma cidade amorosa e acolhedora ou não, se pode ir de bicicleta ao trabalho ou só enfrenta ônibus e metrô lotado. Está tudo relacionado”, reflete.
Questionada sobre a importância da representatividade em áreas de conhecimento como arquitetura e urbanismo, Tailane lembra como a busca pela identidade negra sempre foi, desde a época da escravidão, interrompida e fragmentada pelos processos transmigratórios, seja no campo ou nas cidades, pelo exôdo rural ou afastamento das populações pobres e negras para a periferia.
“Essa procura pela identidade está tanto no território espacial, como no corpo das pessoas negras. É crucial esse debate, sobre trazer a memória, identidade, história, geografia e arquitetura. Vale destacar o quanto essas transmigrações, primeiro de África para América e depois os trânsitos dentro do Brasil, foram, de fato, fragmentando as identidades das populações negras e que por isso, diante dessas sucessivas mudanças, o corpo negro assume esse lugar de territorialidade”, explica.
Corpos e territórios
Manifestações culturais como as escolas de samba, os bailes black das décadas de 1970 e 1980 e territórios dos dias atuais como o Aparelha Luiza, em São Paulo, são citados como expressões da continuidade histórica da população negra como forma não apenas de sobrevivência, mas de existência, para além das marcas da escravidão ou dos castigos do racismo. “São lugares que se tornaram territórios negros, onde há corpos que se encontram, se identificam, reconhecessem e conseguem se refletir um no outro”, enfatiza Tailane.
Idealizadora e uma das pesquisadoras do coletivo Cartografia Negra, Raíssa resgata nomes de proeminentes intelectuais do movimento negro como Beatriz Nascimento e Abdias do Nascimento, que abordaram a questão do direito à cidade em seus objetos de estudo.
Ela também ressalta a importância do acesso à universidade por parte da população negra, ocorrida nas últimas décadas, como processo fundamental para a ampliação do debate sobre o apagamento dos territórios negros.
“Conseguimos olhar mais para isso nos últimos dez anos porque, com o maior acesso da população negra às universidades, criamos mais pesquisadores negros. O Cartografia existe desde 2017 e investiga como nossa história foi propositalmente invisibilizada, porque toda história é política. Se falo que tal bairro é italiano, japonês, coreano ou negro, está sendo colocada uma narrativa, uma história, sempre pautada por esses interesses políticos. Só que, como a gente vive num país racista e misógino, vemos que as narrativas pretas nunca são celebradas e, se isso mudou, é por causa dos diversos movimentos negros, teóricos eintelectuais, como Beatriz ou Abdias, que atuam nessa luta constante”, destaca.
Raíssa pondera, no entanto, que, apesar do avanço, ainda é a população negra e pobre que sofre as consequências de um ensino precarizado e que se desdobra para sobreviver a um contexto de privações múltiplas, seja de renda, saúde, emprego e cultura. “Ainda temos a população mais vulnerabilizada. Quem ocupa os postos mais inferiorizados é a população preta. Basta olhar para esse lugar que estamos agora, o IMS, que é gratuito, e refletir: quem realmente pode pisar aqui dentro?”, questiona.
A bienal segue em cartaz até 17 de julho. Confira a programação.